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Banho de Acetona – Por Eduardo Machado

Uma história
alternativa de Na Toca dos Guarás

No trailer que acampei no Mar Chiquita, por minha sugestão meu cunhado Danilo buscou o vidro de acetona para pôr nas chamas do latão.

Ele nos persuadiu a ir em Miramar de Ansenuza dar uma relaxada, e eu aceitei sem ao menos decifrar os suspiros antes de chegar no destino; o esfrega esfrega nas coxas; e o seu desenho na agenda de fecho da irmã mais nova — era uma estrada de eucaliptos submersa em água.

Atiçado ao dispor de um descanso para mim, pedi a Danilo para ver o espirituoso pântano pincelado por sua imaginação. Saindo do automóvel, avisei aos dois, estendi um lençol na praia e deitei de lado, viajando naquele papel. Contudo, na quarta olhada abandonei a folha ao avistar um homem em decomposição no leito do aguaçal. Jamais entendi como ele havia aparecido. A chave era o número quatro?

A antiga sogra de tão atingida pelo “acidente”vendeu o apartamento e se livrou dos pertences do filho, tirando os diários. Neles haviam anotações de quando vivíamos na nossa fazenda em Palmeiras de Goiás; a baixa autoestima iniciada pelo pai imoral;  os desabafos de uma juventude distante de seu namorado; o distanciamento emocional da família e detalhes da traição mútua de seus pais, etc. A infidelidade daí gerou mais transtornos no meu emocional. Sou divorciado há quinze anos, pois um dos sogros se envolveu numa traição duradoura. Quantas carícias dei nela enquanto pecava? A Argentina deveria ter proporcionado estabilidade a nossa família ao separar a mãe de Madalena do esposo vingativo, longe disso o exílio acentuou a heresia já existente.

Foi no acampamento vazio, em 1989, na segunda que eu presenciei de Danilo uma transparência sem igual, o porquê de nos convidar ao retiro na laguna: “Sentem falta de morar em Goiás ou não? Desconsidera minha curiosidade. Minha mãe não tem coragem de dizer, mas eu tenho. Pra mim é um absurdo você e o Armando estarem casados enquanto eu sofri por ter amado um familiar. A mãe dormiu com um revolucionário por meses e… e eu fui me apaixonar logo por ele, a criança bastarda, que ficou aos cuidados do amigo viciado. Quando serei amado?! Eu sei. A co-bi-ça é nojenta! Como posso explicar? Vocês são meio-irmãos, é culpa da minha mãe”. Perante a apatia impenetrável da sobrancelha larga do meu cunhado, minha esposa reagiu descartando o anel para um banco de areia empapado.

A revelação e o escárnio de sua face não podiam ser reais.

“Danilo, eu planejava um filho! Era dever de sua mãe abrir a boca para nós! Me sinto corrompido” repliquei ao insensível, obrigando-o a se ajoelhar de medo, mas Leninha interrompeu numa erupção: “um dia eu senti orgulho do meu pai, e o que ele fez?! Dormiu com uma kenga. Oprimia nossa mãe e quase tirou a vida dela. E a mamãe? Eu a amava. Arranquei ela do Brasil pra salvá-la do meu pai,  porém depois de hoje, eu tenho horror de ser filha dessa desprezível”, arruinada sob o sal das lágrimas, fui abraçá-la tão aturdido como ela “O seu homossexualismo trouxe a corrupção dos meus pais e o seu namoro estava fadado a ruir” rebateu sem pesar sua língua.

Num retorno célere, Danilo a olhou, cravou sua pupila no fogo, e apertou o recipiente inflamável de manicure.

— Eu retiro o que disse, entrega o frasco na minha mão Danilo! — alarmada, Leninha usou cada centímetro dos pulmões.

Sinalizando, fiz ela o distrair para eu desarmá-lo da garrafa perigosa, no entanto pro meu infortúnio o menino molhou os dedos na acetona e acertou em meus olhos.  

Quan-do vou ser compreendido? Madalena minhas ações não importam em todos os cenários, sou alguém doente. Desisto disso DESISTO! — meu cunhado espremeu a acetona sobre si numa virada.

— NÃO! Você não tem o direito de abandonar os irmãos e a mãe — levantando a saia evangélica, acelerou perseverante os longos metros que o separavam, à medida que minha vermelhidão na vista foi aliviada pela água duma mochila térmica.

— Rapaz sai de perto desse negócio, a gente faz o que você quiser! — elevei o tom ludibriado pela fé. 

Alheio às nossas vontades ele triscou o topo do cabelo na fogueira.

Um clarão fortemente laranja o iluminou. Debatendo com urros guturais as chamas derreteram a bermuda e envolveram sua pele, mas apesar de socorrê-lo com panelas entupidas de areia; meu cunhado se esquivou no seu resquício de tempo vivo e na auto crueldade consumada tombou num escombro.

— Não morre Danilo! — Esperançoso de encontrá-lo com pulso, puxei seu pé menos exposto às brasas para um charco de água parada.

Agachada pelo choque, Leninha puxou a barra da minha calça tampando as narinas e sem forças para vê-lo diretamente:

— A ambulância! Como está o estado…  — perguntou babando sobrecarregada pelo remorso.

Ao apagar o incêndio por completo, vi sua face empretecida e o interior dos ossos da cara; nas pernas, bolhas vívidas e amarelões se pregavam aos montes.

A visão e o fedor da musculatura tostada fez eu virar meu semblante rapidamente, não dava para fitar aquilo por muito tempo.

Hiperventilando, eu hesitei.

— Madalena já é tarde. Adiantou em nada. A cabeça dele foi carbonizada, não olha. Está morto, morreu.

Entregada pela ira, Leninha esmurrou a areia como protesto, deixando o choro se misturar nos grãos do chão.

— Eu havia pedido desculpas, pra quê foi em frente?

A resposta satisfatória não veio de mim. 

O que ela diria à mãe quando a encontrasse?

Condenando nosso casamento, também tirei meu anel da mão, em seguida dei meu ombro a Leninha e a convenci se esquentar numa muda de peça da mala, para me dar tempo de pegar um objeto parecido a uma pá. A prioridade era enterrar aquele corpo metade carvão e metade humano; e saber como viveríamos dali adiante.

— Espera! Armando quer enterrar meu irmão onde ele se suicidou? — ela se colocou no caminho da enxada debaixo da cama, empurrando o cabo com os pés ofendida — Quero chamar uma autoridade, eu me explico com eles, vai ser vergonhoso pra mim reviver… você sabe. Ele tem direito a um caixão no mínimo.

— Fazemos o que você quiser.

Na necropsia, os legistas souberam a causa da morte. A mãe de Leninha, no entanto, — e a minha — nós a protegemos de sentir o fardo daquela morte.

Recordação do passado – 1989

No trailer, sozinhos, num sussurro alterei o destino em nosso favor:

— Ele foi morto num acidente de carro e queimado enquanto saía do veículo. Promete falar essa versão para a mãe dele?

— Prometo. Quanta novidade turbulenta numa noite só! Apesar do meu grande remorso, não quero ela sentindo os sentimentos de desolação que estou tendo.

Promessa combinada eu tranquei a fechadura do trailer alugado e não reparei na mudança de estação no rádio da cabeceira. Todavia a ex esposa reparara. Na frequência do aparelho, tocava os sonidos metálicos de um Waterphone. Que barulho grotesco! Espantados, porque parecia uma provocação do além túmulo, abaixamos o volume.

Na noite de lua minguante iniciamos a caminhada de retorno ao corpo do nosso irmão, após vê-lo levaria Leninha a delegacia da região.

Outro assombro seguiu-se, entretanto, e sabotou a partida do motor. O desaparecimento da carcaça do suicida. Em seu posto ficaram uns fiapos de cinzas flutuando na poça.

— Cadê ele?!   

— E eu lá sei Leninha? Estamos isolados, pode ter sido um animal selvagem.

— Armando, estou me sentindo mal de novo. Como vou enterrá-lo nessa situação?

— Os policiais podem esperar até amanhã.

O seu pressentimento me envolveu. Não era uma hora propícia para dirigir. Desconfiada e abatida, ela aceitou e nos abrigamos no trailer. Na ausência de um passatempo eficaz, na cozinha apertada, reabri a agenda buscando um consolo e chamei Leninha; até que amanhecesse, uma ínfima melhora em seu estado acalmaria nosso aposento.

Observamos juntos a arte de Danilo. Por desatenção, o nosso pranto desbotou a lateral da imagem; expondo um contorno familiar.

Imediatamente fechei o caderno apertando meu peito com a mão esquerda ao distinguir a figura. Em um eucalipto, um estático cadáver nos vigiava.