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Crime de Consciência – Por C.J. Oliveira

Um homem tem um crime de consciência e não sabe lidar com isso. Atordoado, não consegue conter esse sentimento perverso. É um remorso que traz consigo como um segredo medonho.

Ao abrir-se com um amigo, este o aconselha a buscar a Deus e a pedir perdão. Nessas horas, como auxílio, não há nada melhor que a força do Criador. Então, diante do que vem sentindo ultimamente, das pressões psicológicas que o acusam, o homem vai à igreja como para confessar-se.

Ao chegar, a porta principal está aberta. O salão, iluminado, mas ainda vazio. Ao fundo, o púlpito, talhado em madeira, tem a forma de um grande livro aberto pelo meio. Dois jarros de flores, um de cada lado, dão um tom magnânimo ao ambiente. O microfone está aberto, mas capta somente o silêncio. Desse altar, minuciosamente preparado, é tudo que se vê antes da parede opaca. Além dela, nada há, a não ser um mundo de contemplação.

Uma pessoa, aqui e ali, preenche os enormes bancos, dispostos em fila.

Ao centro, uma organista põe-se a tocar. A música sacra, dedilhada em ritmo suave, dá ao ambiente um tom solene e respeitoso das coisas sagradas que nos tange a mente.

Tendo chegado mais cedo que de costume, o homem está ali na presença de Deus, o Todo Poderoso, a confessar internamente os seus pecados. Buscando conforto, senta no penúltimo banco à esquerda e aguarda o iniciar do culto.

Logo chegam os fiéis.

Uma mulher gorda senta, paralelo a ele, num banco à direita. Um senhor de cabelos molhados e terno escuro senta à sua frente. Duas velhas, a passos lentos, chegam, e se acomodam no primeiro banco junto à porta.

Em pouco, jovens vão chegando, moças e rapazes bem-vestidos, maquiados como para uma festa. Rápido o salão se enche, reforçando a ideia de que em breve um evento religioso acontecerá.

O dirigente do culto entra e se acomoda ao lado do altar. Faz a costumeira oração individual e fica à espera. Outras personalidades importantes do ministério local também chegam e tomam assento. Cumprindo regras internas, saúdam-se mutuamente, e são observados pela maioria.

O culto começa, e todos cantam o primeiro hino. Um clima de paz e conformação toma conta do ambiente.

No seu lugar de origem, o homem reticente, fechando o Livro Sagrado, presta atenção em tudo: nas pessoas, no altar, no aspecto frio e monótono das luzes acesas. Ressabiado, seus olhos inquietos varrem o salão, à procura de algo que não sabe bem onde está.

Na tribuna, a pregação começa, e um ar solene toma conta do pequeno templo.

Nisso, entra uma jovem, provavelmente solteira, de uns trinta anos, cabelo liso castanho rente às costas, vestido longo marcando a silhueta, com ar de deusa, toda perfumada, e se senta três bancos acima de onde o homem está. Será desimpedida? ― Essa frase tão óbvia lhe vem à cabeça, automaticamente. Não, ela não é solteira; dá para perceber de relance uma grossa aliança reluzir na mão esquerda. Nesse momento, de olhos atentos, observa a mulher, mas não tem tempo de ver o rosto dela. Só vê as costas, um pequeno pedaço, com o qual cria para si um mundo de quimera, e nesse barco da imaginação põe-se a delirar… O rastro do perfume fica pelo caminho quando ela entra e passa, os pés pequenos a pisar o chão como se flutuasse num jardim sagrado. Nessa hora, o crime de consciência do homem aumenta porque ele esquece de Deus, e com olhos de cobiça contempla e deseja uma mulher casada.

E que mulher… O vestido bem-talhado para aquele corpo, deixa ver as curvas reentrantes que se espalham no banco, com a formação perfeita da coxa esquerda que se debruça sobre a direita, num gesto de pura exuberância. O quadril ligeiramente largo contorna caprichoso a linha da cintura. Esse torneamento do corpo sob o vestido provoca no homem reações de imageria, impossíveis de descrever com exatidão.

O ancião continua a entoar palavras santas, mas a comunhão do homem vai embora. Não pensa mais nas coisas do alto. Só sabe olhar para a mulher que entrou, e insinuado por um sensualismo que é só seu, põe-se a imaginar os traços de um rosto de diva. E chega a exclamar para si: meu Deus, que deslumbramento, que beleza rara!… E, por instantes, sente-se como o Rei Davi, que desejou Bate-Seba, a esposa de seu melhor servo, fiel amigo. E em devaneio, fica esperando o momento exato de ela virar-se de lado, e essa visão pelos flancos da mulher vestida, atiça mais ainda a imaginação desenfreada.

Alguns minutos se passam, e ele a acompanha em cada movimento, filmando cada gesto, cada pormenor, com a câmera da mente. De repente, ela ajeita o cabelo, e nesse toque de seda, que é o deslizar dos dedos sobre a cabeça, percebe o quanto a mulher tem mãos macias, ligeiramente brancas com a textura do marfim. As unhas esmaltadas de uma cor transparente, de longe têm o brilho de pérolas raras. E quando ela se vira um pouquinho e olha para trás, dá com os olhos dele a comê-la como quem come uma fruta proibida; então, rapidamente, a mulher se vira, perturbada, e olha para a frente de novo, voltando-se à consagração do culto racional, que continua na voz do ancião. Parece não perceber as intenções do homem pecaminoso na retaguarda, que não só a observa como se perde em vão, num mundo paralelo.

Ele, que chega ao templo para confessar pecados, acumula mais um na casa do Deus que perdoa, sem conseguir conter os impulsos que ardem dentro dele e fazem o coração dar saltos dentro da roupa. Vive um momento a sós, melindroso e único, refém dos pensamentos que o sufocam, como se as pessoas em volta fossem descobrir antecipado o susto que com ardor lhe ronda à mente.

O culto vai passando, e no relógio mudo na parede lateral, o tempo flutua numa nuvem de espuma, depois avança… Sem que tenha a exata noção desse hiato de tempo, a primeira hora é um cometa riscando um céu longínquo. Agora, restam só trinta minutos para findar a cerimônia. Meia hora pode ser uma eternidade para quem sonha. Não consegue se concentrar em nada. Está perdido. Terrivelmente perdido num mundo estranho. Uma mulher casada… Que horror! Longe de Deus e dos homens, a única coisa que enxerga é a mulher de costas, ah, essa perdição! A imaginação não para, e a mente à solta se consome num turbilhão de coisas incontroláveis, fantasias de um espírito pleno de cobiça. As visões pecaminosas continuam, varrem o salão. E, agora, ele a deseja ardentemente, com todas as forças de um coração perverso. E fica meditando quão sublime deve ser aquele rosto de miss, bem como todo o corpo quente feito a imagem de uma santa, ah, como deve ser… Bulinar esse corpo é provar do pecado, fruta doce e amarga ao mesmo tempo, um pecado prazeroso, um pecado da carne que condena, mas redime. É ir do céu ao inferno num passe de mágica. Não há a menor dúvida nisso ― pensa vazio e solitário preso ao banco, rendido às tentações que o sufocam. E essa beleza juvenil, casta, singela, imaginada é o que mais o machuca na jangada do pensamento.

O culto acaba. Todos se levantam para sair. Agora é ele que está de costas para a mulher, que também levantou, e vem saindo. Tudo se inverte. Ressabiado, depois de desejá-la intensamente, tem vergonha de olhar para trás e denunciar a ela e aos outros o que a mente revela, o seu crime de consciência, tudo que os olhos não consegue esconder. Então sai, meio cabisbaixo, pior que quando entrou, com vergonha de Deus e dos homens, com o sexo aceso e o rosto em brasas, como se todos em volta estivessem presenciando as clareiras expostas da sua consciência.