− Profissão?
− Escritor.
A mulher, ao lado, resolve agir. Até então não havia dito nada, enquanto ele respondia ao check-in do hotelzinho de beira de estrada:
− Como assim, “escritor”?
− Ué, escritor, aquele que escreve.
− E de onde você tira que é escritor, imprestável?
− Bom, eu escrevo, daí sou escritor.
− Não, eu tô dizendo de quem escreve para valer!
− Mas eu “escrevo para valer”. Já até publiquei livro, fiz lançamento…
− Mas isso vale para quem vive disso, seu burro! Quem ganha dinheiro.
− Filha, a grana para esta viagem tu acha que saiu de onde? Do coelhinho da páscoa?
Sem graça com o desenrolar cotidiano, caseiro, conjugal e caótico à sua frente, o atendente arrisca:
− Desculpe senhor, é que…
− E você, cale-se! – a mulher lançou-lhe o famoso olhar de caninana preparando o bote. Retomou a carga dando as costas para o pobre − Estou falando de dinheiro de verdade, para comprar casa, bancar feira do mês, pagar energia, telefone, mandar os filhos estudarem na Suíça, tirar carro do ano, férias na Europa…
− Uai, mas nós estamos de férias!
− Eu tô falando de férias na Europa, não em Cachimbó do Aterro, energúmeno! Além do que, você “vive de férias” com esse “negócio de livro”…
− Querida, veja bem…
− Veja bem é o escambáu! Não me venha com essa retórica de “comunidade de escritor”! − Apertava-o devagarinho, tal sucuri faminta a bezerro gordo. Suspirou, olhou ao céu, agradeceu a providência divina pela paciência. Se a substituísse pela força, já era.
− Amor da minha vida, não se constrói uma carreira literária do dia para noite. Tudo tem um caminho a ser seguido, entende?
− Eu entendo é que esse parangolé aí não dá camisa.
− Benzinho, tudo tem seu tempo.
− Seu tempo nada! Tinha mais é que arranjar um trabalho de verdade, um emprego de salário-mês e aí sim, usar do tempo livre para fazer essas coisinhas.
− Bom, aí seria um hobby, não uma profissão.
− E quem disse que isso é profissão? Ta maluco? Profissão de verdade é aquela com diploma, certificado. È médico, engenheiro, advogado.
− Meu bem, é um tipo diferente de profissional, mas é uma ocupação válida sim. Não sai das faculdades em “produção de linha” como os outros, mas um escritor, basicamente, se cria. Tem que ler muito, decifrar os códigos, estruturar um estilo, se apoderar das letras e construir mundos. Enquanto se formam milhares de advogados e médicos por ano, dentro dos parâmetros estipulados, um escritor tem que ser lapidado, exercitado, tarimbado, entende? É sim, uma profissão, sendo que até é reconhecida pelo Ministério do Trabalho. Número 2615 do Código Brasileiro de Ocupação (do 05 ao 30): Autor-roteirista, crítico, escritor de ficção, escritor de não ficção, poeta, redator de textos técnicos…
− Isso é desculpa de quem não quer trabalhar. Vai me dizer que você faz isso tudo aí.
− Não, querida. Sou um escritor de ficção, que pode ser contista, cronista de ficção, dramaturgo, ensaísta de ficção, escritor de cordel, de folhetim, estórias em quadrinho, novela de rádio, de televisão, obras educativas de ficção, fabulista, folclorista de ficção, novelista (escritor), prosador, romancista… Bom, isso é quando eu to sóbrio, porque quando tomo umas, cometo uns poemas, prá lá de etílicos.
− To sabendo, isso é desculpa sua para não fazer nada e ainda encher a cara.
− Fazer o quê, se o “desregramento dos sentidos é a melhor via para o desconhecido”, como diria Rimbaud, o doce maldito…
− Quem é esse tal de Rambo? É outro desses imprestáveis que andam contigo nos botecos? Deve ser né, porque até você xinga o cara de “maldito”!
− Bom, é que… De certo modo… Ah, deixa prá lá.
− Ta vendo? Falo sempre que esse negócio de escritor é fachada para ficar de pernas por ar!
− Mas querida, se eu não investir na carreira, dedicar meu tempo, como posso fazer algo que valha à pena? Como posso ser sincero com minhas escritas se não as levo a sério? Se não aplico meus esforços para estruturar minha obra, fazer pesquisas, estudar outras vertentes da escrita, aprimorar minha técnica, enfim, fazer algo que seja ao mesmo tempo instrutivo, literário, divertido, questionador… Em um país como o nosso, que tudo o que se faz pela cultura ainda é pouco, nós, os artistas, temos que ter o triplo de esforços que os outros segmentos. Temos que nos lançar de cabeça, dar a cara à tapa, sofrer privações, escutar provocações, para tentar alcançar um lugarzinho ao sol que seja…
O atendente, não percebendo o momento do discurso, ainda arrisca:
− Senhor, eu preciso que…
− Calma aí, já chego em você. Onde estariam os grandes nomes da música brasileira se, ao primeiro sinal de contratempo tivessem jogado tudo para o ar e desistido? Se o Joaquim Maria não desse voz ao Machado de Assis? Se o Antônio Renato, advogado, não tivesse dado vida ao Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbbo, deixasse o Ceará e ganhasse o mundo? Que fim teria o Angenor não se transvertesse em Cartola? O que seria de Pelé se tivesse desistido da bola?
− Isso não é para você. Não tem o talento necessário – Jurou ter visto a peçonha dela escorrendo no canto da boca. E um guizo simbilando no ar, cortando os ouvidos, lenta e mecanicamente, um momento hitchcockiano de tensão tomando corpo. Ainda tentou devolver um sorriso.
− Talvez você esteja certa. Mas eu tenho ao menos que tentar. Fazer algo de belo, ao invés de só correr atrás do vil metal. Criar, produzir, interagir.
− Isso não dá camisa. E nunca vai mudar.
− _“A gente muda o mundo na mudança da mente. E quando a mente muda, a gente anda pra frente, e quando a gente manda ninguém manda na gente.”_ **
− Neste mundo há um mar de pessoas e você é somente uma gota no oceano.
− Pode até ser, mas sou a gota revoltada…
− Você já teve uma ocupação de gente na vida, não?
− Claro…
− Quer saber, por mim pode ir à merda com essa palhaçada de escritor, artista, o que for! Eu é que não vou ficar presa a um sem futuro como você − rodopiou nos calcanhares e serpenteava porta afora quando estacou de repente, decidida a dar um fim tanto no assunto quanto no relacionamento − Se fosse tão esperto quanto parece, deixava esse negócio de lado e voltava a fazer o que fazia antes. Afinal, o que você fazia antes, seu porcaria?
O homem, honrando as calças e as palavras, abaixou-se incontinenti, abriu a mala, sacou algo de lá, apontou para a cara da cara metade e disparou. O verbo e a bala, duas vezes. Ficou olhando para a ficha, enquanto o recepcionista marmóreo do outro lado do balcão pedia aos céus que o chão se abrisse e o levasse para longe dali. O homem tomou da caneta e reformou a ocupação.
− Profissão, matador de aluguel – virou-se para o rapaz, explicativo − Pronto, agora eu quero ver alguém reclama, né? Eu mato a cobra e mostro o 38…
** Versos da música “Até quando?” de Gabriel Pensador.