A tarde bonita, o sol bem alto indo a pino feito um holofote amarelo, borrando a tarde quente, sombras aqui e ali, numa sequência alegre de azulado dia de sete de setembro. Em volta, a natureza calma do lugar mergulhada em penumbra fazia ainda mais turva a água límpida e fria do Rio Uru, que ali, próximo à Cidade de Goiás, naquele ponto em especial, circundava um bambuzal enorme com as pontas esbandalhadas deitando para o rio, num movimento sereno de jiboia astuta e traiçoeira, sondando a presa. O vento manso sacudia as ramas, reinventando ciclos, indiferente a qualquer surpresa. Num ponto um pouco adiante, uma grande pedra negra e uma prainha, de areia fina e clara, onde aqueles quatro homens se puseram a deliciar o rio, a beleza do lugar, a tarde imensa a rodar o tempo presente, sem compromisso com nada que os incomodasse, felizes com o passeio e a pescaria, que apenas começava. Eram quatro homens de meia idade, amigos, vizinhos um do outro, conhecidos de há muito tempo, a cento e trinta quilômetros de casa, desejosos pela pesca, o banho no rio e o jogo de truco, à noite, quando esta chegasse com suas surpresas. Vinham planejando aquela viagem há algumas semanas como meninos quando esperam um presente na noite de Natal, o sorriso estampado com o brilho da alegria, no qual só a ideia de passar todo o feriado prolongado fazendo o que mais gostavam já fazia a vida dura de roceiros que levavam valer a pena.
Naquele tipo de passeio as mulheres não iam, mulher em beira de rio dá trabalho, gera manutenção. Era um passeio tipicamente masculino, farra particular de andanças e tropelias, onde a cachaça rolava solta, dos quatro homens que eram, sobretudo, compadres de há muito tempo, tanto tempo que nem lembravam mais, cada um admirando e respeitando o outro naquela franca consideração que faz das boas amizades a melhor coisa desta vida.
Naquela tarde de sexta-feira, avivada pelo sol alto velando as horas, nenhum deles poderia supor ou calcular nada que não fosse o prazer inenarrável de estar ali matando o tempo, sair do estresse do trabalho, largar cada um os seus afazeres diários, para vir dormir no mato, saborear a lua clarear altaneira os mistérios da noite. O jogo de cartas, o peixe assado e a cachacinha quente tornariam mais animadas ainda as conversas entre eles; o baralho carteado indo até de madrugadinha, sem nada que atrapalhasse essa doce convivência entre amigos. Tão alegres se encontravam, que sequer poderiam imaginar que em breve viveriam a situação mais inusitada de suas vidas.
Todo esse flashback de cenas que com certeza pairava sobre a mente e o coração dos homens, infelizmente não chegou de fato a acontecer. Antes que a noite caísse de vez, escurecesse as moitas e encaixotasse o rio, algo funesto, grave e aterrador veio a efetuar-se primeiro, desfazendo os ânimos, acabando com o passeio como se um obscuro intento já estivesse preestabelecido, o qual não podiam redirecionar nem impedir. Um dos homens, o mais velho deles, sem que ninguém esperasse, passou mal, com uma dor aguda no peito, dor que só aumentava tanto quanto a angústia dos outros em socorrê-lo; uma dor tão aguda quanto a espada luminosa da morte, que atravessando-lhe as entranhas, retirasse a sua vida. Com dificuldade para se locomover, andou em volta, a chamar os companheiros, sentou-se à sombra de um pequeno arbusto, sempre com a mão no peito, dizendo “ai, ai”… Já não aguentando mais a dor, em instantes, caiu no solo molhado pela água escura à beira do Rio Uru, caiu para não mais levantar. Junto com seu último fôlego milhares de pequenas bolhas de espuma marcaram o canto da boca do infeliz, que arroxeando de vez os lábios, não teve recurso, não teve socorro. Era um enfarte. Um enfarte que veio de dentro para fora, golpe de aríete estrangulando as entranhas, com a grande força de um vulcão explodindo, revolvendo terras antes nunca revolvidas, arrebentando tudo internamente. Não houve tempo para nada, não houve tempo para reza ou qualquer tipo de exclamação alta que os atendesse. De súbito, cessaram as reações. Fulminado, lá se foi o compadre mais velho, morto ali, de forma trágica, diante das águas mansas que choravam penosamente o seu último fôlego de vida.
Melancólico e dramático era rever essa cena tão real e atroz repisar as suas mentes impressionadas, martirizando cada desvão do pensamento, diante deles que, até então, todos muito alegres, estavam ali simplesmente por diversão; que jamais imaginariam algo tão cruel assim acontecer de forma traiçoeira e repentina, coroar de tristeza aquela primeira tarde, que agora, apelava para a noite, chamando a noite, noite que vinha devagarinho, galopando nas sombras já tomando as copas das árvores maiores, enchendo todo o mundo de uma pesada e bruta escuridão. Sinistro era o fato de confrontar a morte de perto, provar do fel gelado que engasgava saliva na boca, deixando por dentro de cada um deles uma sensação de perda, aperto e comoção íntima, sem remediação. Doloroso era lidar com aquela sensação de que um fantasma ou força estranha do além movia tudo em volta com suave movimento, impregnando de cisma cada coisa imóvel, à espera da próxima vítima, já que a vida é fugidia semelhantemente a uma folha tangida pelo vento.
No relógio, seis e meia da tarde. Hora terrível para alguém falecer. Hora incerta, hora extrema, vaga, furtiva e misteriosa… O entardecer andando feito uma enorme sombra trazendo consigo o sombrio véu da noite. Diante do medo e do pavor daquela situação inusitada uma coruja de orelhas piou ao longe… Junto com esse pipiar, outros barulhos estranhos se infestaram na mata. Os gaviões perscrutavam os ares tal como fossem a esquadrilha da fumaça. Um cavalo relinchou no pé da serra. Pelo correr dos trilheiros, um fungado de anta. Muitos bichos nessa hora pareciam correr pelas sendas do vale, rumorejando sei lá o que, como se improvisassem uma fuga. A natureza toda, de repente era só ruídos, ruídos excêntricos e aterrorizantes vindos de toda a parte. O perigo rondando em torno… Animais felinos furando o escuro descompassado com os olhos apavorantes da morte.
Assombrados que estavam daquela situação macabra arrastaram o corpo para um lugar seco, aonde a água não vinha, e diante do impasse que era viver aquele doloroso momento perceberam, embora a noite já caísse, que o compadre defunto já mudava de cor, assumindo assim um tom bem escurecido, derramando mais medo ainda em todos, e um pesar profundo. Embriagados daquela decepção, alguém teve uma ideia sorna: dois deles buscariam ajuda na cidade, voltariam para casa, avisariam a família, enquanto um, o mais humilde deles, ficaria com o compadre morto até que o recurso chegasse para tomar as providências. Os dois que foram buscar ajuda não ficariam de forma alguma ao lado do corpo, ainda mais a noite chegando. Era a covardia de ambos que se revelava; mas um dos compadres era humilde demais para deixar o homem morto ali, jogado ao ermo por quem tinha plena consideração de amigo. Que fossem os outros buscar ajuda, mas que fossem logo, não arredaria pé dali enquanto a medicina legal não chegasse. Profundamente abalado, o homem humilde e manso, viu os outros dois sumir na mata e abandoná-lo só, ali, aos pés do defunto, àquela hora triste. Um arrepio longo percorreu todo o seu corpo.
Ele que sofria de hipertensão, viu o seu coração bater forte quase saindo pela boca, mas penosamente continuou no seu intento de ali permanecer como um cão de guarda. Quase teve um enfarte também, quando de súbito ouviu ruídos bem perto como se uma onça se aproximasse ou corresse em volta. Acendeu uma fogueira ali mesmo para se proteger do frio e afastar a possibilidade de aproximação daquele animal, e cada vez que olhava o compadre morto diante de si à beira do rio, que a essa altura escorria calmo e escuro feito um lençol negro, o pavor lhe baixava na mente, perturbando todo o seu ser. “― Hora dura era aquela, siô!” ― Contaria, depois, aos amigos e familiares da vítima: “― Mas eu não podia sair dali de forma alguma, o compadre merecia isso.” Foram, sem dúvida, os piores minutos de sua vida; as pernas já não obedeciam ao cérebro, já não conseguia andar de um lado para outro para inspecionar nada; a emoção terrível de estar presente vivendo aquele pesadelo o tornava teso como um espantalho na noite.
Os outros dois compadres só foram retornar ao local, três horas depois de deixá-lo sozinho ali na mata com o corpo. Quando os faróis do veículo da medicina científica extravasaram o breu da noite, com os compadres de volta, sentiu-se a salvo como se saísse de um túmulo. Mas isso só se deu por volta das dez horas da noite; durante quase quatro horas ele permaneceu ali, velando o defunto, que agora estava bem preto mesmo, bem horrendo, podia-se enxergar pelo brilho das lanternas dos legistas que manuseavam aquele corpo sem o menor pesar, como se a morte nada fosse, pois para eles, acostumados à lida funérea, nada os impressionava mais, era normal aquilo ― trabalho qualquer de todo dia, num dia qualquer.
Após retirá-lo das entranhas da mata, o humilde compadre que havia ficado, até então, de corpo presente, de vigília o tempo todo pelo amigo morto, entrou em choque, com crise hipertensiva, muito próximo de ter um ataque também, tendo que enfrentar algumas horas adicionais de velório, agora real, com caixão e tudo, onde todos queriam saber com detalhes o terror da sua história maldita, vivida às margens do Rio Uru, registrada para sempre na sua memória. Diante dos olhares curiosos que o cercavam de perguntas, ele foi contando, pausado e sorumbático, a sua inusitada narrativa, deixando em cada ouvinte a terrível marca do horror da convivência de perto com a face negra da morte. E só quem já encarou a morte de frente sabe o que é isso.